em viagem...

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Caríssimas,
é em grande regozijo que acabo de ler vossa bem aparecida carta e que suas notícias muito me encorajam por tão adivinhada decisão tomada. Privilegiado me sinto por tamanho desafio, este de pertencer ao restrito grupo dos eleitos por vós para tais aventuras partilhar.
Não avanço sem antes querer informar que me encontro neste rigoroso instante em que vos respondo em plenas águas rebeldes desgovernado. A tempestade negra assola a embarcação e os trabalhos para domar tamanha fúria aguentam-se desde há umas quantas estrelas que já dificulta ter conta. Não obstante este actual mas assim espero passageiro percalço, é com afeição que vos passo a desenhar o meu último capítulo de mais uma ilha descoberta por onde com muito gáudio fruí a ventura de permanecer um par de vintenas de auroras.
A conferi com o nome de - Ilha da Parcimónia - por tanta conciliação e apaziguamento em mim tive deleite de experimentar. Fora neste caso um dos meus últimos espantos, quiçá o maior desde que tempos muito atrás iniciei viagem. Porventura a ilha mais sóbria e equilibrada jamais tocada pelos meus pés que logo fiz caso, para sempre enquanto lá permaneci, em despir mal sentiram a areia como seda da praia onde ancorei. É montanha íngreme polvilhada de formas mil variadas fragas, vegetação rasteira mas bondosa, como se de terra vulcânica fizesse parecer ainda recente. Coisa ponderada onde os elementos do todo se entendem relacionar entre. Maioria das árvores ostentam já em adivinhar que para tempo próspero toda a ilha de verde forrada se irá tornar. Sensação curiosa de nada estar em seu falso lugar onde tudo aparenta ser por apenas o ser sem competição. Talvez não só ou tanto a ideia de um mundo novo mas de um lugar sim extraordinariamente arrumado como se de uma sábia e antiga força responsabilidade seria. Não fora encontrado qualquer anúncio de engenharia complexa de nossos demais ou ancestrais, e se de uma encosta rochosa por exemplo se tratasse era sim acidente natural, meticulosamente esculpida pelos ventos que a bem dizer por vezes sopram a generosa pujança.
Trago em mim hoje afável sentimento em ter apreciado território de tão distinta sobriedade onde o tempo do estar não fora mais nem menos do que somente respirar. Digo assim porque nem uma única dor me afligiu ou pensamento mais incómodo, tampouco a dor das feridas do amor da mulher que falta muito me faz ou das mazelas do corpo cansado por já tanto caminho percorrido. O equilíbrio das coisas quedou tão poderoso em mim que transformou, sentindo a fazer parte do Todo passei eu a viver. Confesso que nem uma única vez me preocupei em tentar razão por tamanha existência, apenas assim desfrutei de tudo o quanto a ilha me quis presentear.
Espero saber estar a dizer certo sobre, porque confesso que nos últimos dias desconfio já se ilusão minha foi. Mais estranho pensar o último vislumbre que me recordo ser de um súbito tremor de terra e de seguimento em mar alto acordar. Ainda me pergunto hoje se sonho ou delírio de mente foi. Iria jurar que tudo me pareceu tão genuíno quão a lucidez das águas generosas do rio que me saciou a sede, da magnificência das árvores de frutos que me fartaram a fome e sombra me abrigou do pico do sol mais da cadências das chuvas decididas. Incluso ecoam ainda as longas histórias nos meus ouvidos do vento da noite que me adormeceram. Autêntico mesmo tudo me pareceu querendo acreditar que verdade segura não deixou de o ser.
Seja, envio junto única imagem desta magnífica ilha acompanhada de outras, mais de uma dezena, que confirmam a estadia em outras paragens. Mais faço ainda, pois terei grande gozo em partilhar de novo agora aí nas terras de Almada, acrescentar, do ano de dois mil e treze, excerto de correspondência virtuosamente lavrada pela minha estimada já Amiga Poetisa Marta Bernardes, que tão bem ilustra aquando expedição à Ilha das Quantas Pontes:
(...) meu Caro, que fortuna deve ser a de avistar uma ilha. Parece coisa de somenos, mas bastaria pensarmos no que nos conta o Poeta sobre os muitos trabalhos da Deusa, aqueles de que foi incumbida para que os lusos se pudessem cruzar com o seu destino, com a sua Ilha dos Amores, para que imediatamente sejamos tomados por uma estranha e humilde sensação de gratidão. Avistar uma ilha é nada menos que cair na sorte de ser avistado por uma promessa. Por isso lhe escrevo com uma certa alegria: a de quem tem notícia de um bom achado e de um amigo sendo.
E não fosse este achado suficiente causa para o júbilo, maior se faz o contentamento de perceber, nesse seu primeiro avistamento, uma promessa de ponte.
Com tão grande agrado vejo que se aventurou a ancorar e descansar sua parafernália de navegante, e caminhar pela paisagem, inventando-a como olhá-la, num ir sozinho quem em nada tem que ver com a solidão dos românticos, mas que a evoca porque é pela paisagem que tenho notícia de si. E reparará que digo paisagem e não natureza, porque num lugar onde é a ponte da visão (como dizia Delacroix) que cria aquilo a que chamamos o entendimento humano das imagens - ponte entre a concretude e o espírito - pouco sobra de natural no nosso olhar para a natureza. O que da ilha nos deixa ver é mais o que dela existe ou ecoa dentro de si, e menos o que a ilha é como evento geográfico. E um amigo fica sempre alentado de ver nas coisas um amigo.
Fico com vontade de imaginar que não vai só porque vai consigo, e que, talvez, a coisa mais natural de toda essa ilha seja que a olhe de forma pedestre. E que haja em si desejo de viajar pois, lembrando nossa estimada Sophia, afinal viajar é olhar. E quantas pontes nessa Ilha das quantas pontes! Parece que na verdade só há paisagem porque elas a criam, como se esse lugar do que quer ser junto (do que é entre, do que une o que era separado, isso que é a comunhão entre dois lugares que antes não comunicavam mais que pelo ver, não se tocavam, não se continuavam, esse lugar que é a ponte como ideia que ao mesmo tempo resolve e denuncia o problemas das distâncias - como queria o nosso querido Heidegger) fosse uma belíssima desculpa para que se decida erigir uma proximidade, uma relação. E que bem decide o seu olhar, e que bem tece a decisão a sua mão escrevente.
Assim me despeço, meu caro, esperando que esta minha carta lhe chegue por ponte aérea, e com a tranquilidade de ver que encontrou para si abrigo, e que por ora, o que interessa é que haja pontes e que o resto... bem, o resto é paisagem (...)

Com estes modos assim me despeço agora, sem antes acabar a vós exprimir congratulação por saber que haveis acreditado na minha pessoa e deixar uma promessa que nos encontraremos em tempos que muito em breve virão...

aos 10 dias do terceiro mês de dois mil e quinze
Ferreira, Pascal

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