Estarrecidos, esbugalhados e afins... (2002/03/04)

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Existe algures no espaço um ponto
Um ponto que concentra todos os olhares
Um ponto que cruza os olhares entre os que estão do lado de lá e os que estão do lado de cá
Um ponto que é momento de inversão
Os do lado de cá passam para o lado de lá, os do lado de lá passam para o lado de cá
Os do lado de lá passam de observadores para observados, os do lado de cá passam de observadores para observados



Intencionalmente, o projecto estarrecidos, esbugalhados e afins procura reflectir em que circunstâncias espaciais e emocionais o observador se deve relacionar com um determinado grupo de figuras que o convida a aproximar. É na produção de figuras específicas, total ou parcialmente modeladas em barro, que se tenta conjecturar sobre como determinados objectos, supostamente alvos de observação, oferecem uma experiência perceptiva magnetizante a quem os vê, quando, a determinado momento, estas se convertem em observadores. Por isso, todo o trabalho evolui em torno da possibilidade de, para quem o experimenta, participar no momento em que toma consciência que está a ser observado.
A produção das figuras concentra-se na ideia do pequeno formato, não só como imagem detonadora de uma nova escala como, e principalmente, portadora de novos significados no triângulo que constrói em conjunto com o espaço que esta ocupa e o suposto observador que ela convida a participar. Esta desejável relação produtora de intimidade, acelerada à medida que o tamanho das figuras diminuem em relação ao corpo do observador, obriga a reavaliar a orientação espacial deste, promovendo a sua participação numa cena que reconsidera os propósitos de uma ideia de escultura que continua a debater-se entre as imediações do grande e do pequeno, do público e do privado.
Na caracterização das pequenas figuras, o rosto, pelo seu grau de expressividade, torna-se na região privilegiada, o que implica o estabelecimento de um reportório de signos à medida que as figuras se vão revelando. Os olhos ultrapassam a mera descrição anatómica para se assumirem, na expressividade do modo de olhar, como elementos cruciais na comunicação com o observador. Tal preocupação faz com que o tamanho e profundidade das pupilas sejam exaltados. De olhar profundo, as figuras observam, questionam e denunciam quem se intercepta com elas. Os movimentos dos seus corpos correspondem a uma determinada reacção. As posições dos seus corpos, calmas ou expansivas, pressupõem uma atitude. O movimento das partes, particularmente da cabeça, mãos e/ou braços, fazem suspeitar um gesto condicionado, uma reacção. Os sentimentos são ilustrados por movimentos da cabeça: a surpresa do encontro com o observador envia-a para trás; a obstinação mantém-na direita; a curiosidade inclina-a para a frente.
A comunicação entre as duas partes é inaugurada quando, por sua vez, o observador que, desesperadamente deambula à procura de significados, descobre, em determinado momento, um ponto virtual suspenso no ar: o ponto onde os olhares das figuras se cruza com o olhar deste. No momento em que o contacto se estabelece as figuras conquistam o seu verdadeiro significado: elas observam-nos a observá-las! São observadas por aqueles que elas observam.
Em suma, este projecto procura provocar um encontro íntimo e mudo a quem o experimenta. Desejavelmente poderá despertar um estranho desassossego ou arrepio, um embaraço, uma inquietação ou incómodo. Não é senão um jogo entre dois universos que se cruzam e se confundem; um encontro entre duas entidades que se vêem e se fazem ver.

Porto, Março de 2003

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